quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O roubo

O tempo tem sido escasso, e, consequentemente os posts também!

Estou em congresso, algures numa cidade espanhola, a enjoar de paella, mas não de tapas e montaditos, para mal dos meus pecados, nutricionalmente falando.

O trabalho tem sido intenso. Os congressos espanhóis são congressos a sério, com muita investigação básica e clínica na primeira pessoa, e alguns pesos-pesados da psiquiatria mundial.

Ontem, ouvi falar de doença bipolar.

Para os mais desatentos, a doença bipolar é uma perturbação que cursa com episódios depressivos, maníacos e mistos.

Muito resumidamente, nos episódios depressivos, a pessoa tem humor triste, falta de prazer nas actividades que antes lhe davam prazer, desespero, fadiga, diminuição do apetite ou aumento, diminuição da actividade motora, pensamentos/visão depressiva sobre o futuro, sobre si próprio e sobre os outros... Na mania, a pessoa tem exactamente o oposto: está expansiva, eufórica, cheia de energia, com o pensamento com uma velocidade de fazer inveja a um adepto de street racing, gasta rios de dinheiro, pode inclusive ter convicções fixas, persistentes, não rebatíveis à argumentação lógica (chamadas delírios) de que é um imperador, ou de que é um deus, ou um profeta...

Muitas vezes, e esse foi um dos pontos centrais do debate, a doença bipolar passa muitas vezes despercebidas, mesmo aos olhos dos psiquiatras mais treinados, porque nem sempre dá sintomas tão exuberantes como querer comprar a ponte Vasco da Gama, nem que seja às prestações. Com efeito, andar contente das ideias e cheio de energia para fazer tudo dá jeito a qualquer pessoa...

Aqui, é possível ver um desenho feito por uma doente, que retrata de forma bastante bem conseguida as duas fases da doença:




Voltando à conversa, a mania cursa muitas vezes com desinibição, e deu origem a uma das histórias mais curiosas que me aconteceram:

Uma doente, com doença bipolar bastante grave, com vários internamentos, mas que, curiosamente, desde que passou a ser seguida no privado, nunca mais foi internada, (nao, nao vou ser o próximo Mourinho da psiquiatria, mas o que é certo é que eles às vezes até melhoram...) chegou-me ao consultório algures no Verão passado com ar efusivamente alegre, de olhos esbugalhados:

- Dr, tenho um presente!

Perante o meu "Não precisava de se ter incomodado", ela lá colocou uma caneta em cima da mesa. Depois, lá me segredou, para que a irmã, que ainda não tinha entrado na sala, a não ouvisse:

- Roubei-a para si!

Depois de um estupefacto, "o quê?", e oscilando perigosamente entre a reprimenda paternalista que se impunha e o disfarçar da vontade de começar a rir a bandeiras despregadas, lá consegui explicar à doente que aquela não era a atitude mais adequada...

E, depois de uma conversa bastante grande, acabei por lhe subir a medicação antipsicótica, de forma a controlar o episódio maníaco...

5 comentários:

PR disse...

Olá
Desde já peço desculpa pela invasão, mais uma vez, deste espaço.
Li o seu post, e fiquei com algumas duvidas.
Porque é que surge a doença bipolar?
Pode ser uma doença hereditária?
Um episódio muito forte pode desencadear uma doença bipolar, numa pessoa até então considerada "normal"?
A outra parte prende-se com o facto de ter referido o acompanhamento publico e privado.
Nunca estive internada(graças a "Deus"-O escape)e que me tenham dito tb não tenho uma doença bipolar.
A minha situação particular surgiu à muitos anos atrás, abusei do trabalho, de acordo com o profissional (particular) que me acompanhou eu caí num esgotamento cronico (?).
O facto é que durante anos (2 a 3) o profissional que me acompanhou no publico, medicou-me com todo o tipo de drogas, que faziam com que eu tivesse reacções desconhecidas, como euforia, rir por tudo e por nada, ainda me estava a rir e já me sentia a pessoa mais idiota à superficie da terra.
O facto é que tive que recorrer ao acompanhamento particular, para me sentir de novo eu, para me conhecer como um ser humano.
É carissimo.
O que mais me revolta é que tenho que abdicar de muitas coisas, para me tratar, quando eu poderia obter esse tipo de ajuda, no sector público, ainda por cima uma boa parte do meu salário mensal vai-se em descontos.
O doutor está do outro lado, e não me leve a mal com o meu desabafo.
A questão é, são os mesmos profissionais que estão nos dois sectores, porque é que beneficiam tanto o estado, e prejudicam (acredito que muitas vezes desconhecendo a realidde diária da pessoa), o doente.
Bem haja
PR

Psiquiatra da Net disse...

Obrigado pelo seu comentário.

Por acaso até estou do outro lado (ou dos dois outros lados, dado que trabalho no público e no privado.)

A questão aqui prende-se muito com o nível de exigência do sector público. Exigem-nos que façamos números: X consultas em X tempo, X internamentos em X tempo.
Na privada, somos nós que estabelecemos as fronteiras. Sou eu que digo quanto tempo quero passar com um doente, de que horas a que horas é que trabalho, com que meios é que trabalho.

Por exemplo, enquanto no público tenho pelo menos 15 doentes por manhã, porque até limito as consultas, no privado reservo 6 para o mesmo tempo. Isto permite-me gerir a consulta de outra forma, e não é porque as pessoas pagam... é porque eu, na privada, é que me chefio.

Em relação aos tratamentos, nós sabemos que uma dada quantidade de pessoas tem aquela reacção mas a infâmia da coisa é que não é possível perceber quem é que vai desenvolver o quê... E isso não tem nada a ver com público ou privado.
Aqui o dito "conforme for o toque assim é a dança" aplica-se completamente...

PR disse...

Bom dia Doutor,
Quando escrevi que estava do outro lado, referia-me ao facto de ser médico e eu ser utente.
Cada pessoa reage de uma forma muito própria a cada químico também compreendo, o que não aceito, é que me seja imposta uma determinada substância que altera a minha forma de ser e de estar, para isso não recorria ao médico, existem outros meios.

O que eu nunca tinha pensado era na questão desses números impostos pelo "boss".
Não gasto muito tempo a contar ao médico a contar as tinha "mágoas".
Talvez por isso nunca tenha equacionado a situação.

Agradeço a sua explicação.
PR

Alecrim disse...

Pois eu, acho que tenho, mas não sei se de facto tenho uma doença bipolar. De grau II, dizem-me. O que sei é que isto, tenha que nome tiver, é uma merda.
Que as deve haver piores, ah pois deve.

byClaudioCHS disse...

QUAL DE MIM SOU EU...?

Aqui, o poeta
não é simplesmente
um gênio do conhecimento
dos sentimentos humanos
Na verdade
não há gênio
(e nem conhecimento)
o que se passa
é que não passo
a palavra
a personagens,
nem empresto a voz
a ilustres heterônimos:
dividem-se, em mim,
dois pólos
que não se comunicam
não dividem o espaço
Cada um,
a seu tempo
preenche-o completamente
assenhoream-se
dominam-no
como se não tivera
outro dono
são pólos inconciliáveis
incomunicáveis
incompatíveis de gênio
senhores de si
e as vezes de mim
me confundem
são cheios de razões
não sei o que sou
são parasitas
alimentam-se
da minha consciência
e só percebo
que não são eu
quando se vão.
Mas... alternam-se
tão rapidamente
que nem tenho tempo
de ser eu mesmo
Eu? Desculpem-me:
quem sou eu?
Não sei...
Só sei que não sou eles
(mas também não sou eu...)
pois no curto espaço
de tempo
em que se ausentam
sou apenas
o vácuo,
vazio absoluto
Deus, olha pra mim...
e cura-me
antes que julguem-me
e condenem-me
porque
ninguém
irá
exorcisar
o que não são
possessões
mas dualidades:
euforia e medo...

http://progcomdoisneuronios.blogspot.com/2011/10/lente-do-medo.html

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